quarta-feira, 3 de junho de 2020

Poema: Cebolas podres e lágrimas, de Dom Alencar




Cebolas podres e lágrimas
por Dom Alencar

Quando as pessoas estiverem 
se matando na guerra 
você vai rezar para ter um bife esperto -
belo e rubro - o mês inteiro. 

Tão logo você estará comendo até as
tripas dos velhos ratos - enquanto houver.

Trincheiras serão abertas no concreto nu
das calçadas. Armas químicas destruirão 
os girassóis e as crianças.

Venderão cebolas podres entre 
os destroços da próxima esquina
e você sairá na mão com qualquer 
um pelo direito de comprá-las. 

Seu filho e sua esposa morrerão antes 
da primavera. Um pequeno equívoco -
eles chamam isso de fogo amigo
nada que vá mudar os rumos da guerra.

Você não tem dinheiro suficiente para
comprar cebolas podres. É possível
também que a essa altura
já não lhe sobre uma única
lágrima - mesmo assim você irá chorar.

Então, dirão sob acentuado tom de
normalidade: é a vida. 

E você só conseguirá pensar em quão
caras podem ser cebolas podres e lágrimas
Tudo é caro. Aviões e bombas cairão dos céus.

Mas os seus pais não receberão uma
medalha de prata nem terão direito a
saber que numa quarta-feira, enquanto
eles ainda dormiam naquela cidadezinha
esquecida, você morria queimado.

Ninguém saberá a razão das cebolas
Quem não consegue chorar
Talvez alguém desconfie
Já estaremos todos mortos.

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