O FETICHE DA POLÍCIA DE ESQUERDA
por Luiz Fernando de Souza Santos
Polícia de esquerda? Isso é um fetiche. Coisa bonita num feed de rede social, pois pode até ganhar muitos likes, mas é um engodo. Explico. Mas explico com as ferramentas do meu ofício, em que pese muitos achem nos dias atuais que basta assistir uns vídeos no YouTube para ser um sociólogo.
O alemão Max Weber, insuspeito de ser um intelectual de esquerda, revolucionário, e coisa que o valha, apontou que toda comunidade política tem um território em tela para administrar. Nas sociedades modernas, instituições racionais, impessoais, são erguidas como expressões de uma dominação burocrático-racional que permite à comunidade política deter o poder sobre o território.
Mas não é suficiente um aparato institucional juridicamente legitimado. Ao lado dele e articulado com ele, a comunidade política, o Estado, tem a prerrogativa do uso legítimo da força para impor aos cidadãos a obediência. As forças armadas e o aparato de polícia constituem o braço legitimamente armado das instituições estatais. Então, só para marcar bem a linha de raciocínio, a força policial é, na dominação burocrático-racional, instituição que representa o poder de força legítima.
O modelo típico-ideal weberiano nos ajuda a situar as linhas gerais da dominação legal e o lugar da força de polícia, porém, para ir ao sentido fundamental da ordem político-social deste modelo, recorro aqui à contribuição de Marx e Engels. Eles assinalaram a essência do ser-Estado: é um comitê que administra os interesses da classe burguesa. Esta é a dimensão ontológica do Estado. Nenhuma disposição teórico-metodológica pode negar a natureza ontológica do Estado sem incorrer no acionamento de dispositivos ideológicos de falseamento do real, daquilo que nos dias correntes é assinalado como pós-verdade.
Em condições, pois, na qual o Estado é o gerente dos interesses burgueses, a força policial, braço legítimo do poder estatal, é a mão armada que defende tais interesses. Se assim são as linhas gerais do modo de ser da polícia sob a ordem política moderna isso não significa que ela se realiza do mesmo modo em todos os lugares.
O conceito de desenvolvimento desigual e combinado permite avançar para uma compreensão do poder de polícia na periferia do sistema-mundo capitalista em condições bem particulares. No caso brasileiro, de uma nação formada sob o ódio-pânico que as elites têm dos subalternos, a polícia será a expressão legítima desse ódio-pânico. Ela é parte de uma engrenagem de morte dos periféricos da estrutura social brasileira.
No contexto de pandemia pelo novo coronavírus, a polícia continua a dar mostras do seu lugar numa ordem social dominada por elites rancorosas ao ponto de inclinarem a nação em direção a uma política de corte fascista.
No Rio de Janeiro, o menino João Pedro estava em casa, cumprindo isolamento social, quando foi barbaramente assassinado em operação da policia federal e civil no Morro do Salgueiro.
Em Manifestação contra a democracia, pró-Bolsonaro, policiais fazem continência para os manifestantes fascistas que desfilam com cores verde e amarelo.
Num condomínio de luxo em São Paulo, um empresário dispara um discurso de ódio a policial militar que fora até sua casa apurar denúncia de agressão do primeiro à esposa: “Você é um bosta. É um merda de um PM que ganha R$ 1 mil por mês, eu ganho R$ 300 mil por mês. Quero que você se foda, seu lixo do caralho. Você não me conhece. Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville, mano”. Nos espaços da elite a força letal da polícia silencia. Ela só é acionada na periferia.
Em manifestações no Rio e São Paulo, que tinham, de um lado, apoiadores de Bolsonaro e, de outro lado, defensores da democracia, a força policial se colocou entre os dois grupos. A posição do agrupamento policial diz muito do seu lugar na ordem social brasileira: os policiais estavam de costas para os manifestantes de extrema-direita e voltados para o grupo de militantes antifascistas. Quando balas de borracha, spray de pimenta e bombas de efeito moral foram disparados, se dirigiram contra aqueles que defendiam a democracia, isto é, em favor dos interesses da tosca elite nacional.
Policiais individuais, poucos, não têm acordo com o uso da força policial para além do que prevê o marco legal brasileiro. Esse é um passo importante, mas não significa que haja a possibilidade de daí se extrair a ideia de constituição de uma polícia à esquerda. Esta força ontologicamente é o braço legitimamente armado do poder político que, em última instância, defende os interesses de classe burgueses. Uma reforma policial é apenas um paliativo para uma ordem política, econômica social, ambiental e sanitária, destrutiva. É por isso que nos últimos anos a juventude pobre, preta, indígena, estudantil, etc. tem ecoado uma palavra de ordem certeira:
Não acabou! Tem que acabar!
Eu quero o fim da polícia militar!
A juventude que levanta barricadas anticapitalistas pelo mundo afora e também no Brasil, sabe que é toda uma estrutura à imagem e semelhança do capital que tem que ser posta abaixo. Assim, não se ilude. Uma polícia de esquerda é uma contradição de termos, uma mentira, um fetiche.
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