JAIR COBRA*
por Victor Libório
O velho chamou um qualquer para erguer dois metros de tijolo e concreto em frente à casa onze da Rua Treze. Terminado, cobriu-se o muro de branco numa sexta-feira.
Na próxima sexta, o velho deixava engomado a mesma casa; na mão uma pasta de gente importante. Atravessado o portão, ele olhou para o que considerava uma desgraça: o branco do muro rabiscado de linhas tortas e falhas que escreviam, de caligrafia horrorosa, JAIR COBRA.
JAIR em cima, COBRA em baixo.
— Desgraçado — praguejou o velho. — Vândalo desgraçado!
Pior é que era dia de reunião no escritório e ele não era livre a meio segundo de atraso. Conjurou dois ou três palavrões e se foi.
No fim da tarde, o próprio, com minuciosidade vangogheana, passou um restante de tinta branca somente por cima da silhueta das linhas pretas, para assegurar que a quantidade bastaria. Nisso, gastou duas horas.
***
Era ritual todo sábado o velho sair bem no comecinho da manhã para voltar de sacola cheia da mercearia; desta vez não pretendia fazer diferente. Foi quando ele virou a cara para o muro e achou dois JAIR COBRAs, um de cada lado do portão. Isso mereceu o dobro de palavrões, com certeza.
E foi embora.
Voltou com duas latas de tinta. Só uma era branca. A outra, contou ao vendedor, seria para uma experiência. Aí, novamente, o velho passou boas horas cobrindo os JAIR COBRAs de branco. De novo naquele jeitinho, só que agora por pão-durisse mesmo. Terminou na hora de almoço. Depois, o dia seguiu normal. No fim dele, o velho dormiu.
E levantou só na manhã de domingo.
Mal levantou, aliás; correu de ansiedade para a frente da casa. Por lá, nada de surpresa, fora que agora havia três JAIR COBRAs.
O velho entrou.
E saiu carregando uma lata de tinta preta e um pincel mais ou menos da grossura dos rabiscos. Ele não cobriu nada, entretanto. Pelo contrário, contribuiu com as artes.
A primeira ganhou um QUER no meio: JAIR QUER COBRA.
A segunda recebeu um ENGOLE: JAIR ENGOLE COBRA.
A terceira teve um É VIADO no final: JAIR COBRA É VIADO.
O domingo sucedeu normal e satisfeito.
***
A segunda-feira acordou assobiante.
O velho vestiu roupa de reunião, apesar de não ser dia de. Passou creme no cabelo, penteou-o. Jogou perfume no ar, entrou na neblina de cheiro. Escovou os dentes antes de sair, nem sempre o fazia. Até espremeu uma espinha, o pus que voou no espelho rendeu gargalhada.
De pasta e tudo, o velho ainda assobiava cruzando o portão. Na beira da rua, ele parou de cara para a casa e pausou o assobio para apreciar o branco infinito e intocado do muro; claro como dente de jogador de futebol.
Quando voltasse à mercearia, o velho falaria ao vendedor o resultado que já esperava: o tal Jair que tanto cobrava achou mais feio se sair de viado que de vândalo.
Dando início à caminhada, ele mostrava dentes, mas prometeu a si mesmo que jamais, nunquinha novamente atrasaria diária de pedreiro.
Fez bico e já assobiava de novo.
*Conto publicado no terceiro volume da revista Bodozine, lançado em 04 de maio de 2018.
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