segunda-feira, 8 de junho de 2020

CONTO O coelho deixou a cartola, de Letícia Cardoso

Conto

Sem título, de Giovanne Reis

O coelho deixou a cartola
por Letícia Cardoso

Oh, não é incrível como o coração humano pode amar duas ou mais pessoas ao mesmo tempo? Mas imagine que, apesar disso, poucas pessoas aceitam compartilhar amor com outro alguém. A maioria quer ser amado sozinho, venerado. Você tem um grande problema aqui. Definitivamente muito maior do que você imagina.

“Mamãe, eu matei um homem. Coloquei a arma em sua cabeça e o clarão que vi nos seus olhos era a morte. O fim da minha vida.”
G.

Por que isso é tão pessoal? Você acha mesmo que me conhece porque me assiste todas as noites? Por que sabe o que faço depois das apresentações? Eu odeio a forma como você sorri para ela. Odeio que ela  seja tão dependente de ti. Odeio que você goste disso. Seu sorriso amarelo de cigarros não irá lhe salvar. Hoje ficaremos quites.

“Respeitável público, bem vindos a mais uma apresentação do circo Macondo em Manaus”.... guardo no bolso da minha calça. Ela está queimando em mim. E por Deus, eu quero mais que queime. Aquelas senhoras sentadas na primeira fileira, que susto terão!

Atrás da lona, assim têm sido as últimas semanas. Daqui a alguns dias faremos três meses de... como posso dizer? de encontros noturnos? Os malabaristas estão se apresentando agora. Então o sangue saindo pela boca, atravessando o pensamento, as miniaturas em sombra me olham lá de baixo, enquanto eu me preparo para o trapézio. Conto até dois, me lanço e sou agarrado por Gil. Estou enfeitiçado por seus olhos, apesar de seu sorriso sombrio. Ele sabe!

Caio.

Flashes e gritos, e eu não tenho nenhuma resposta. Ando na grande avenida, enquanto Manaus dorme serena. São quatro horas da manhã e o barulho que ouvi no circo continua estalando em minha mente. Amanhã será a última noite de apresentações, para o meu conforto e tormento. O frio da madrugada está arranhando meus braços. Não pude me secar direito depois que saltei, tive que fugir, ainda não era a hora.

 ***
Eu bebo o céu como recompensa pelas minhas apresentações no Macondo. Estou preso aqui há tanto tempo. Ninguém nunca poderia entender se eu contasse. Você teria paciência para me ouvir?

***
Ouço a sirene da ambulância. Os paramédicos já estão entrando no circo.

Esses fantasmas me contam que tudo foi julgado. Mas eu sinto que minha alma já não está mais em mim. É a metafísica que assombra os culpados. Dói tanto, mamãe!

Depois de um período sem ataques, hoje à tarde te esperei no jardim. Guardava em minhas mãos a tua flor favorita que plantam aqui. A enfermeira disse que não tardará para tua chegada. Mas veja só aqueles enjaulados, aquelas vozes me dizem que tu nunca virás. Mamãe, estarás aqui quando eu acordar?

Então você pensa que é uma grande coisa. Seus olhos de chama não me assustam mais! Você pode ser o palhaço, mas é por mim que as pessoas prendem a respiração no final. Não, você nunca teria coragem de se jogar de um lugar tão alto. Abrir mão da vida, e perdê-la todos os dias, noite após noite, a cada apresentação. Você vê esse sangue em minha boca? Ele nunca para de jorrar!

***
Eu esperei tanto. Imaginei você desistindo dela e vindo para mim. Ela nos perdoaria, você não sabe? O amor materno é sempre maior do que tudo. Deveria ter lembrado disso... É tão tarde. Aquelas luzes ali já irão se apagar. Vem.

Sua internação causou frisson na época. Muitas pessoas foram para a porta do hospital psiquiátrico manifestar indignação. O julgamento acabou...

Eu irei atrás de você, com seus sapatos grandes, não demorarei muito para lhe encontrar. Assim que o efeito da morfina passar, eu o terei em minhas mãos.

Mamãe, por que você se foi tão cedo?

Adeus, todo mundo, este é o último grande ato. Você está pronto para o que está por vir? Tome cuidado com o homem no canhão, ele não é confiável – ouvi isso quando criança. Mas Deus tenha misericórdia de todos nós.

Chamas explodem, fogos de artifício queimam, é a última apresentação do circo, o último número está para ser encenado. A enfermeira retira a agulha do pote, as vozes sedentas cantam: já era tarde para quem cedo percebeu o seu fim!

A flor está em um vaso, mamãe. Eu espero que ela esteja tão bonita como nessas duas últimas semanas. Você está vindo e eu estou certo, não é? Eu estou pronto para ser lançado.

(...) Neste bloco você poderá relembrar o dia em que foi condenado à internação e a sua chegada ao hospital:

“Respeitável público, bem-vindo a mais uma apresentação do circo Macondo em Manaus”.... Eu sou uma bomba e agora todos me verão e eu estou pronto para ir. Mamãe, eu sei que já chegou.

No intervalo entre as apresentações, encontrou os dois atrás do terceiro trailer no maior amasso. Bateu com força na lataria do carro. Eles se assustaram, mas não se separaram.

Naquele momento, a canção que sua mãe cantava ressoou em sua memória:
“Se essa rua, se essa rua fosse minha,
Eu mandava, eu mandava ladrilhar”

Lembrou-se da fúria dele ao lhe beijar, ao lhe tocar. Com ela era diferente. Não era um animal, era suave.

“Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes, 
Para o meu, para o meu amor passar”

O vestido dela estava aberto e havia marcas em seus seios. Aquilo o enfureceu. Mais ainda quando viu que seu homem tinha mordidas no pescoço. Aproximou-se mais do casal.

“Nessa rua, nessa rua, tem um bosque
 Que se chama, que se chama Solidão”

Ela levantou o braço. O homem estava pronto para ser disparado.

“Dentro dele, dentro dele mora um anjo
 Que roubou, que roubou meu coração”

BAM! um disparo e o homem foi lançado. Bam! um tiro e ela morta.

Quantas estrelas tem no céu de Manaus, mamãe?

“Nada na realidade me convenceria da vida, nada no mundo real poderia me impedir. Meus fantasmas, eu os levo comigo. Sempre e todos os dias.”

A enfermeira traz uma seringa com o remédio. Aperta forte seu braço.

Uma tragédia marca o encerramento do circo Macondo. Testemunhas dizem...

Tem dificuldades para encontrar a veia. Chama outro enfermeiro, mas ele estava ocupado.

Sempre é hoje. O coelho está fora da cartola e sorri para o grande mágico.

“Se eu roubei, se eu roubei seu coração,
 Tu roubaste, tu roubaste o meu também”

O pecado maior foi o seu. Você destruiu tudo.

Disse para furar a mão. Ela também não conseguiu. Então, como se faz com os bebês, furou o pé esquerdo.

Conseguimos uma entrevista com um dos circenses, o trapezista Gil. Ele nos disse, com exclusividade, que viu quando

Ela tirou a máscara cirúrgica e não bateu o ponto. Encontrou-se com ele no posto de gasolina.

“Se eu roubei, se eu roubei teu coração 
É porque, é porque te quero bem”

Gabriel adormeceu, enquanto o circo se despedia e os fogos explodiam em amarelo e azul.


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