KARLA
por Márcia Antonelli
I
CONTAVA TRINTA E SETE quando finalmente decidiu-se pela mudança. Não podia mais suportar a mulher clandestina que habitava dentro dele. Só não o fez logo por respeito à mãe que ao contrário à ideia, dizia: “Deixa eu morrer primeiro, Carlos, que é pra não testemunhar tamanha vergonha.” Disse ela certa vez quando Carlos ainda tinha vinte e poucos. Ele esperou pacientemente a mãe envelhecer e depois morrer para que assumisse de vez sua nova condição.
II
Cuidou sozinho de todos os rituais póstumos: enterrou a mãe, respeitou o tempo de luto, vendeu a casinha no bairro João Paulo – seu único bem- cortou todos os laços parentais, tomou os hormônios necessários e foi pro mundo com uma nova identidade na alma. Embora soubesse que era um caminho sem volta, estava decidido. Carlos tornou-se Karla e caiu mesmo no mundo, conforme disseram.
Naquela noite quando a viram chegar transformada no ‘Bar Natureza’, as outras fizeram uma grande festa para celebrar. Algumas, é claro, torceram o nariz. Mas tava pouco se lixando. Karla estava era mesmo feliz que uma luz muito intensa saía de dentro de seus olhos castanhos e miúdos. Os cabelos encaracoladinhos desciam alegres e envaidecidos por sobre as omoplatas de ossatura estreita. Em sua noite de estreia, apenas uns poucos se engraçaram dela: “No começo é assim mesmo, mana, não te esquece que são as “rachas” que ainda mandam.” Tranquilizou uma delas. Passou então a frequentar com mais afinco os inferninhos na Tamandaré e imediações, fazendo dali, seu ponto de batalha. Havia, porém, alguma coisa de muito errado com Karla. Na verdade, sempre houve algo de muito errado com ela, desde os tempos de michê, no corpo de Carlos. É que se apegava muito fácil aos clientes. Uma delas, a de nariz de Tucano advertiu:
“Puta não se apaixona, menina!”
Mas o que ela mais queria era se apaixonar. E ela não era puta não, só estava passando uma chuva…
III
O tempo foi avançando e Karla foi cansando da rotina daquele lugar e daquelas pessoas. Botou na cabeça que tinha que ir pra Belém e de lá, quem sabe, até São Paulo. Longe, ela acreditava que as oportunidades eram bem maiores. Ali não dava mais pra ela, não. O lugar tornara-se nojento. A cidade também. Era comum vê-la bêbada, tropegando, descendo e subindo a Tamandaré.
Certa noite, as amigas não mais suportando o seu mau humor e depressão, a deixaram só e colocada* no Mistura Fina. Eram quatro e pouco da manhã. Não havia feito programa algum e precisava de dinheiro. Olhou em sua volta e filosofou sem querer: “A angústia da mariposa não é diferente da de um Louva-a-deus.” Àquela altura já começava a pensar besteiras, quando foi abordada por um marinheiro filipino, desses que vez ou outra aportam no cais do Rodway a serviço de algum Loyd Inglês. Ele então sentou-se todo de branco ao lado de Karla e pagou-lhe cervejas e cigarros. Não trocaram falas. As luzes giravam no teto do Mistura Fina. Uma canção das antigas tocava parecendo um sonho feito de lantejoula coloridas. Depois daquele dia, nunca mais se teve notícias de Karla. Há quem se arrisque a dizer que ela partiu com o marinheiro filipino para um outro continente. O corpo terrivelmente desfigurado que encontraram no Motel Paradaise, naquela manhã logo cedo, não podia ser de Karla, não senhor…
*bêbada – gíria usada pelos travestis (N.da autora)
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