domingo, 14 de junho de 2020

Conto ABAJUR COR DE ROSA, de Márcia Antonelli

Conto



ABAJUR COR DE ROSA
por Márcia Antonelli

I

“Que foi agora, dona Idalécia.” Estranhou o delegado Gregório, coçando com um palito atrás da orelha.
“Ele disse que vai me matar…”

II

Ninguém entendia dona Idalécia não. Tão jovem, bem apanhada, a carne ainda dura, mãe de dois pequerruchos. Uns diziam que era amor de pica, só pode. Já outros afirmavam que ela era mesmo safada, que gostava era de apanhar. Mas quem sou eu ou você para julgá-la. O diabo era Floresmundo. Quando este bebia, vestia a pele do cão; via chifre onde não existia. Vivia a socá-la o rosto como quem soca pilão. Falta de aviso não foi. Etelvina, a vizinha, vivia a conselhar-lhe:

“Mana, denuncia este homem, um dia ele te mata.”

“Quero morrer não, vizinha, tenho dois pequerruchos para criar.” Enquanto batiam roupa, conversavam então as duas comadres:
“Sem beber, Floresmundo é um homem bom. Honrado. Nunca deixou que faltasse nada.” Dizia Idalécia. “Mas quando bebe, não sei o que entra nele. Rezo tanto, comadre. Ele até que parou mais. Me comprou até um abajur cor-de-rosa. Fica lá no quarto iluminando tudo. Rezo tanto…”

“Mas não é por falta de aviso. Um dia ele te mata!” Alertava a outra.

Era sempre assim quando Idalécia sarava das pancadas; quando o olho desinchava mais. Etelvina ia ter com ela aconselhando-a à beira do tanque. A única a preocupar-se de verdade com Idalécia. Salvou-lhe de muitas surras. Vizinha de verdade, ela era. Os outros só assistiam calados. Ninguém tomava partido não. Floresmundo era um homem brabo. Se transformava. E briga entre homem e mulher (como diz o velho jargão) ninguém mete a colher. Mas foi numa noite dessas que Floresmundo chegou torto em casa, quebrando tudo. E olha que faziam meses. Os pequerruchos pareciam piriquitinhos assustados. Nem o abajur foi poupado.
 
“É porque a senhora nunca sentiu o peso de uma mão, minha senhora. Que Deus a livre de tamanha maldade…”

Idalécia no chão vendo tudo girar, e depois, devagarinho, apagar. Enquanto o outro continuava batendo.

III

MANHÃ CALORENTA. Quem chegou primeiro à delegacia foi Idalécia amparada pela vizinha. O rosto desfigurado. Bem machucadinho mesmo. Só depois é que chegou Floresmundo, escoltado. Não se aguentava em pé. Rescendia tanto, o infeliz, que o delegado Gregório apertou uma trezentas vezes o nariz. E abanando-se perguntou:

“O que foi dessa vez, dona Idalécia.” A amiga tomando a frente, explicou:

“Foi esse sujeito, doutor, ele quase mata ela.”

Fique calada e tenha mais respeito. Que houve dona Idalécia.” Tornou o delegado. Mas a coitada não podia falar em razão da boca desfigurada. Delegado Gregório registrou a queixa. Antes repreendeu novamente Idalécia:

“Por que a senhora não larga de vez esse homem, dona Idalécia, parece até que gosta de apanhar. Vão pra casa e tomem jeito.” Disse o delegado Gregório como se aquilo fosse assim. Idalécia refletiu, matutou, (como chamam por aqui) aceitando mais uma vez o perdão de Floresmundo.

A vida seguia seu curso. Floresmundo deu um longo tempo na bebida. Prometeu até parar. Consertou o abajur. Ficou tão amoroso que Idalécia encomendou uma novena. Qual nada! TODAS AS MANHÃS O INIMIGO TOMA SEU POSTO E LEVANTA FURIOSO. É que Floresmundo voltou a beber. Não batia nela, mas a maltratava com palavras, o que era ainda pior. Dizia que ía matá-la se não parasse de tititi com a vizinha ao lado. Esta continuava a botar caramiolas na cabeça de vento de Idalécia. Tem cabimento. Não tardaria ela apanhar outra vez. Teve medo. Seguiu o conselho da outra. Tomou coragem e foi à delegacia. Delegado Gregório até estranhou, com um palito atrás da orelha:

“O que foi dessa vez, dona Idalécia.”

“Ele disse que vai me matar…”

“Mas a senhora não tem um arranhão. Volte pra sua casa. Se ele tocar na senhora, vai preso.”

Idalécia voltou. Cabreira. O marido desconfiado. Não sei como acabou descobrindo. Não me perguntem. Sei que neste dia, Floresmundo faltou ao trabalho. Entrou no primeiro boteco. Fazia um tempo feio. Fechado. Pediu que arriasse uma lapada. Duas. Várias. Encheu muito a cara neste dia. Começou a ver chifres onde não existia. A sombra do capeta mandando ver. Tomou o rumo de casa. Girou o ferrolho da porta. Idalécia rezava perto do abajur consertado. Ele trancara os pequerruchos no banheiro. Depois foi ter com Idalécia. Queria saber quem estava enfiando caramiolas em sua cabeça. E esta história de ir na delegacia. Onde já se viu. Ela tentou gritar por socorro.

Mas dessa vez foi muito rápido. Ele deitou-lhe uma única braçada em seu rosto que Idalécia foi ao chão. Antes, porém, batera com a cabeça na quina da cama, atingindo-lhe o nervo que mata.

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