METÁSTASE
por Elinaldo Junior
Naqueles dias de férias, acordara cedo como de costume. E mais uma vez, partia para as consultas médicas, que agora faziam parte de sua rotina com maior frequência do que na maioria das pessoas. Exímia hipocondríaca, daquelas que mal pegam uma chuva e já sabe que vai gripar, a garganta inflamará e, na pior das hipóteses, teme que uma pneumonia se alastre por seus esponjosos pulmões, até falhar gradativamente de suas funções.
Uma trintona, quase beirando os quarenta, de pele marrom-pálida e dona de um rosto afilado que seria bonito, se aos menos ocupassem uma posição superior aos antigripais na lista de prioridades. Solteira. Sem filhos. Emprego pacato. De poucos amigos. Sozinha, desde que seus pais e (por último) sua tia perderam a batalha contra o carcinoma. Próstata, colo de útero e pulmão, respectivamente. Sabia que a infame genética não costumava perdoar as pessoas e, apesar dos resultados satisfatórios de cada exame realizado, seu medo constante jamais permitiria dias de paz.
Por mais que não compreendesse a oncologia em sua plenitude, imaginava cada gene conspirando contra suas células, arquitetando planos maquiavélicos para seu corpo sucumbir. Talvez uns fatores de crescimento tumoral. Talvez um acúmulo de modificações genéticas que explodiriam em multiplicações. Então ela sentia estas partículas mutantes e aberrantes em metástase, bailando soltas entre os caminhos líquidos da carne humana até parar em outro órgão e ali estabelecer uma nova algazarra, similar às plantas aquáticas do rio Amazonas que, ao balançar das águas, desprendem-se do conjunto e passeiam livres por todo o leito. Daí passa uma pequena embarcação onde estas plantas engatarão na hélice, interrompendo a viagem.
“Capim na palheta”. Era exatamente assim que imaginava a tal doença que todos temiam citar.
Por isso a regular mamografia, papanicolau e até mesmo hemograma (e lembrava-se da cena emocionante onde Camila, leucêmica, teve os cabelos raspados, em Laços de Família). Nunca ia à praia, pois sabia que o sol, assim como proporcionava a vida, podia muito bem trazer a morte. Aquela bola de fogo gigante a espreitar os seres humanos, lançando seus raios ultravioletas, cuja camada de ozônio insatisfatoriamente absorvia. “Câncer de pele”. E passava o protetor solar, questionando-se o porquê de não inventarem um com fator 200. Uma mulher triste, melindrosa. E nem podia afogar a melancolia em álcool, por medo da cirrose.
E mais uma vez, contou o histórico familiar, as dores aqui, os milhares de testes ali. O oncologista dizia para não se preocupar, que os exames indicavam saúde corporal e que não havia a necessidade de solicitar uma tomografia por causa das cefaleias que sentia esporadicamente. “Não, você não tem um tumor cerebral”. E mais uma vez, agradeceu e cumprimentou o médico, na certeza de que ele não poderia compreender a metástase que ocorria dentro de si. E voltou a ficar triste. Dirigiu-se lentamente à parada. Pegou o ônibus pra casa. Sentou-se num banco ao lado da janela, para sentir o vento balançando as madeixas desidratadas. As mãos frágeis segurando a papelada.
E naquele sacolejar de angústia e solidão, sentenciou o diagnóstico exato de sua patologia: câncer de alma. E isso, quimioterapia alguma poderia curar.
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