sábado, 28 de março de 2020

Delírios pandêmicos, de Victor Leandro

Conto


Delírios pandêmicos

Faz dois, talvez três, seguramente quatro dias. Minhas recordações são apenas de claro escuro vindo da janela. Eu abro os olhos e ainda penso, sinto calafrios e trêmulo. Não, é apenas angústia. 36,4 graus celsius no termometro e o real que me diz, não estou doente. Mas há os que estão, e os jornais confessam que já perderam a conta dos números. Sim, é noite. O som vazio dos carros transcorre a intervalos difusos.

O maior dos perigos é estar semiacordado enquanto assisto à TV. As imagens confundem-se e me invadem os sonhos com um factualismo sombrio, o absurdo mórbido da crise incontida, e é então que adormeço penetrante no limbo de todas as memórias que se misturam, e sou aí um soldado combatente, vitorioso e confiante, não preciso dizer o contrário da minha pessoa, a enfrentar os algozes perversos que estranhamente se transmutam, ora são lobos fardados ora formas indistintas, mas que no final identificamos com clareza, eu e meus compatriotas vermelhos, que são eles sem dúvida um conglomerado baboso de vírus e vermes, por cada lado saltitantes e ameaçadores, e frente aos quais investimos com nossas armas e botas. Sim, somos impiedosos contra esses inimigos, e é somente nessa impiedade que nos salvamos a nós e aos outros, até que então sorrimos, celebramos entre nós com afetuosos cumprimentos, ao que de repente estamos sentados em cadeiras tranquilas no descanso de nossos abruptos gestos. A pax gloriosa, a exultação infinda.

Então desperto. E é nessa hora que inicia de fato o pesadelo.

Contudo, resigno-me. A imobilidade é agora a maior das virtudes. Ademais, o que poderia mais pretender com minha tragicidade e meu niilismo? Tudo está como deve nesse confuso instante.

O sol nasce lá fora. Rio. Dou um salve ao Eterno Retorno.

Victor Leandro

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