quarta-feira, 25 de março de 2020

O Liberalismo está morto, por Matheus Cascaes




O liberalismo está morto

por Matheus Cascaes

A morte do liberalismo

O liberalismo, enquanto ideologia, desde suas origens, sempre apresentou contradições. As mais importantes delas talvez residissem na separação realizada em seu interior entre individual e social – privado e público – e na sua concepção de liberdade frente a essa separação. O que havia de problemático nisso era que ao mesmo tempo em que o liberalismo proclamava uma ideia de liberdade garantida pelo direito individual à propriedade privada, via no Estado um ente superior que regularia os limites dessa liberdade e garantiria, por meio disso, uma coesão social. Havia, portanto, uma tensão entre a liberdade individual, representada pela propriedade privada, e a social, representada pelo Estado, no interior dessa ideologia. O chavão mais que desgastado de que “a minha liberdade termina onde começa a do outro” é bem representativo disso.

Com o desenvolvimento do capitalismo, esse cabo de guerra passou a tender mais para o lado do individual que do social. É o momento do surgimento do neoliberalismo, no interior do liberalismo, e da sua consolidação como ideologia hegemônica. Ao se consolidar, o neoliberalismo, por meio de suas políticas de diminuição do Estado, fez reinar o individualismo. Nesse momento, a visão dominante era a de que o indivíduo era livre para garantir os meios de sua subsistência pensando apenas em si e por meio de seus próprios méritos. A visão da sociedade, a partir de então, foi reduzida a uma coleção de indivíduos que estariam reunidos apenas por uma conveniência ocasional. A liberdade, por sua vez, foi restrita ao direito à propriedade.

Por algum tempo, essa visão sustentou-se como hegemônica. Por algum tempo. A crise atual do capitalismo já havia posto essa visão em xeque. Contudo, um acontecimento atual decretou a morte dessa ideologia: a pandemia do Covid-19.

Quando observamos apenas o aspecto da saúde, é possível perceber que a visão individualista proposta pelo neoliberalismo não mais se sustenta. As experiências ao redor do globo têm mostrado que, para controlar a pandemia, não basta que as pessoas sejam responsáveis apenas pela própria saúde, nem que esta continue a ser vista como uma mercadoria comprada com o esforço individual. Se vista dessa maneira, a pandemia se alastra, não se consegue com esse modelo atendimento para todos e, por consequência, o problema não é solucionado. O controle da pandemia passa por soluções que colocam o coletivo na frente do individual. Ou seja, para que o individual exista, faz-se necessário priorizar o coletivo. Assim, a solução passa por propostas que observem a sociedade como ela é, de fato, na sua realidade material, isto é, como algo muito mais complexo que a visão falsa erigida pelo neoliberalismo de uma coleção de indivíduos.

Para entendermos bem esse acontecimento, o velho Althusser dá alguma ajuda. Como aprendemos com ele, a ideologia manifesta-se por meio da entrega a indivíduos de uma falsa evidência de sentido. Por meio dela, o indivíduo constitui-se como sujeito e passa ler o mundo pelas restrições semiológicas impostas por ela. Mas, como também aprendemos com esse autor, a ideologia não promove apenas uma ilusão da realidade, uma falsa consciência – como Marx e os marxistas mais ortodoxos diriam –, mas também uma alusão à realidade. Afinal, se a ideologia fosse apenas uma falsa consciência que não se baseasse em nada, ela não seria (re)afirmada e (re)produzida. Com efeito, a ideologia, para continuar a existir, precisa dar aos indivíduos “evidências” que eles consigam “comprovar”. A ideologia liberal por muito tempo conseguiu isso. Agora, não mais. A morte do liberalismo provém do fato de que a visão que ele sustenta não pode mais ser comprovada pelos indivíduos em sua experiência diante da realidade.

A ruptura histórica e os novos rumos

Althusser já nos mostrou também que uma ideologia é o que mantém uma determinada formação social. Com a morte da ideologia liberal, morre-se também a formação social proveniente dela. O que significa que a pandemia tem intensificado um processo de ruptura na história que já vivíamos. É certo que, depois desses episódios, o modelo de “democracia” liberal que temos atualmente seja substituído por outra coisa.

Neste momento, portanto, se abre a nós a escolha de que rumos a história vai tomar. Como já vimos com Nietzsche, a progressão da história não é necessariamente a da melhoria do homem, a do progresso da humanidade. Ao mesmo tempo que se abre a possibilidade de se construirmos novas relações baseadas na solução de uma contradição que alimentávamos por conta de uma falsa consciência, existem forças que tentam, a todo custo, manter essa contradição, ainda que o que surja depois não seja mais exatamente o modelo em que se vivia antes. É aí que surge o fascismo.

Nos meus Esboços de delineamento da postura fascista, eu descrevi a postura fascista como uma postura surgida diante da contradição. O fascista é aquele que não consegue lidar com a contradição e, no lugar de se revoltar contra ela em prol de uma ordem mais coerente, escolhe não tratar a contradição como tal e a adota apaixonadamente como se ela fosse a própria coerência. Não à toa, diante desse cenário de morte do neoliberalismo, surgem posturas fascistas que não são exatamente antiliberais, como as fascistas tradicionais, e, neste caso, mais à direita que estas e que buscam manter levando às últimas consequências as ideias individualistas do neoliberalismo. Ultimamente, esses setores da sociedade têm menosprezado os cuidados coletivos para se controlar a pandemia. Para não quebrar a economia capitalista, eles rejeitam esses cuidados, mostrando que não se importam que, com isso, morram algumas pessoas. É preferível, para eles, algumas mortes, a ter que se repensar esse modo organização que se mostra falido. Tem atitude mais fascista que o desprezo pelo extermínio de parte da população? É possível que, diante de um cenário que caminha na contramão da defesa de seus valores, venha de setores como esse uma tentativa de afirmar os valores que não mais se sustentam até à barbárie.

Agora diante de nós há uma escolha: ou nos revoltamos contra esse pensamento hegemônico, ou tentamos nos agarrar a ele mesmo sabendo que ele não nos sustentará. Ou se opta pela revolta, ou pelo fascismo. Mas, mais que isso, ou reinventamos nossa maneira de ver a sociedade e passamos a lutar por uma liberdade individual que passa antes pela liberdade coletiva, ou nos asseguramos na falsa e insustentável ideia de que basta assegurar a liberdade individual para garantir a coletiva e rumaremos para a barbárie.

Assim, o liberalismo está morto. É necessário que impeçamos que ele ressuscite ao terceiro dia como um monstro fascista. Para tanto, faz-se necessário, diante do “a minha liberdade termina onde começa a do outro”, nós contrapormos o “eu me revolto, logo existimos”, de Camus. Para depois, podermos estabelecer no lugar um estado de coisas que está se abrindo diante de nós e que priorize as relações reais, isto é, que proclame, como já proclamava Bakunin, que “a liberdade do outro eleva a minha ao infinito”.

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