terça-feira, 10 de março de 2020

Poema: OS DESERDADOS DA TERRA, de Dom Alencar

poesia

Comunidade Monte Horebe, março de 2020. Foto: Portal do Movimento Popular



Os deserdados da Terra

os deserdados da terra 
se contorcem dentro de um útero 
precisam nascer 
querem nascer 
mas há um velho muro de pedra 
um velho muro de pedra 
e um dia de fome 

o aluguel da existência
a ser pago antes do
final do corrente mês
deus do céu 
quantos porquês 

explicações esdrúxulas 
inclinações burguesas 
subterfúgios egoístas 
retóricas apodrecidas e 
um afago antirrevolucionário 
diante dos pescoços 
que não param de tombar 
na periferia 

da periferia 
da Paris dos trópicos 
esquecida 
da América Latina 
os anos passam e 
novamente estamos aqui 
os filhos de ninguém 
donos de nada 

no primeiro vacilo 
outra vez – ao meio 
partem nossos crânios 

sonhei com um poema 
mais leve e não encontrei 
vi a realidade sombria 
desgraças e espasmos 
misturados com sangue 
ante ao triste rosto 
do recém-chegado 

dentro de um útero 
hostes de meninos sem dentes 
vagam enquanto a febre 
devora o que resta 
de infantil em seus corpos 
precisam nascer 
querem nascer 
mas há um velho muro de pedra 
um velho muro de pedra 
e um dia de fome 

o aluguel da existência 
a ser pago antes do 
final do corrente mês 
deus do céu 
quantos porquês 

a fé nos homens 
ligeiramente abalada 
causas sobre causas 
e de repente um deserto estéril 
nos assombra 
já quase nada se fala 
proibiram-nos 
os sonhos e as palavras 
o passado se anuncia 
os dias se arrastam 
como malditos fantasmas
velhas-novas tragédias
a miséria nos afaga 
os rostos entristecidos 

a passividade brota 
como a última quimera 
aberta na chaga do oprimido 
uma vala no chão da própria carne 

os deserdados da terra 
se contorcem dentro de um útero
precisam nascer
querem nascer 
mas um velho muro de pedra 
um velho muro de pedra 
e um dia de fome 

o aluguel da existência 
a ser pago antes do 
final do corrente mês 
deus do céu 
quantos porquês

Dom Alencar

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