domingo, 22 de março de 2020

Tenho pensado muito sobre o tempo, de Vinícius Moraes

Conto

Tenho pensado muito sobre o tempo, já estou velho e não me resta muito dele, então era esperado que eu começasse a filosofar sobre essas questões que a arrogância da juventude afastou de mim por algum tempo. Quando eu era criança, uma noite, acordei chorando e gritando por minha mãe que apareceu rapidamente querendo saber a razão de tanto desespero, eu inconsolável perguntei para ela: “Mãe, um dia eu vou morrer? ”, ela riu e com toda a calma me respondeu que sim, mas que eu não devia pensar nisso ainda, era muito novo para me preocupar com essas coisas, me agasalhou, deu um beijo em minha testa e voltou para o seu quarto. 

Lembro que fiquei muito irritado por ela ter rido de mim, ainda continuei chorando baixinho por um tempo até que o sono venceu e no dia seguinte essa questão foi completamente esquecida e minha atenção foi tomada por alguma brincadeira da infância. Agora relembrando esse episódio entendo o riso da minha mãe e a obviedade de minhas indagações, sim um dia eu vou morrer e não adianta chorar por isso 

Hoje eu rio da maneira como essa indagação veio até mim tão de repente em uma noite de sono e da igual maneira foi esquecida, percebo a graça de ser criança, de se espantar com tudo, de ver mágica em trivialidades, mas aceitá-las sem empecilho algum. Percebo isso numa uma garotinha em especial

Ela vem com uma inocência de pássaro e taca tinta guache no meu box caríssimo da trilogia original de Star Wars, com DVD bônus e comentários do diretor, ela faz isso com o sorriso mais brilhante que eu já vi na vida e uma concentração digna de um golfista profissional em final de campeonato. Enquanto saltita alegre pelo meu quarto vai deixando glitter cair por todo o tapete recém lavado, aos poucos se dirige a minha estante de livros e busca a foto biografia do Fernando Pessoa que eu tanto amo, ela joga no chão como se fosse um trapo velho, tira de seu estojo de princesas um giz de cera rosa e o empunha com a mesma gravidade de um cirurgião com seu bisturi, devagar e focada ela desenha em cima da foto do poeta algo que eu suponho ser uma girafa. 

”. Não é uma girafa, é um cachorro!”, ela me corrige zangada, então eu comento zombeteiro “Pois então é um cachorro muito do seu pescoçudo”, ela suspira impaciente e diz “Você não entende nada”, concordo com um sorriso. Vai ver é um daqueles casos de jiboias, elefantes e chapéus que a minha idade não permite mais reconhecer. Para ela questões como tempo, morte e vida são desnecessárias, francamente, quando estou com ela para mim também, os cachorros de algum desenho da TV são bem mais intrigantes. 

Você tem razão querida eu não entendo nada mesmo, mas acho tudo lindo.

Vinícius Moraes

2 comentários:

  1. A infância dos nossos filhos nos fazem ser criança tbm : sonhar e ser feliz nas pequenas coisas !!!

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  2. Gostei bastante do texto, me fez lembrar da infâncias dos meus filhos e como essa Inocêncio é doce , gostei tb do "easter eggs" que o autor colocou no texto..

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