Alucinação, de Ismael Gomes de Menezes (Artista Plástico) |
Precisamos matar Belchior
por Matheus Cascaes
Uma obra permanecer atual é normalmente motivo de felicidade para um autor. A durabilidade é com frequência usada para medir a grandeza e a importância de uma obra. Esses paradigmas não funcionam, no entanto, para Belchior. Especialmente para aquela que é considerada por muitos a sua obra-prima: o álbum Alucinação.
Nesse álbum, o compositor buscou a todo custo afirmar a vida, considerando-a como a realidade material. Nas canções, a vida está na “experiência com coisas reais”, e não nos voos que tiram os pés do chão, nas fantasias, nos sonhos. Essas coisas inclusive afastam o contato com o real e são, por consequência, formas de negação da vida, na medida em que ela é muito mais simples do que o que essas formas de negação costumam construir a respeito dela, e, nela, portanto, “nada é divino, nada é maravilhoso, nada é secreto, nada é misterioso”. “Viver é melhor do que sonhar”.
Esse compromisso com o real é materializador ainda de outro aspecto do álbum. O eu lírico das canções está muito próximo do próprio compositor. Entre eles, não há um distanciamento grande, somente aquele da medida do fato de que a arte não é a vida. Qualquer canto é sempre menor que esta.
Afirmando que a vida é o real, o compositor apontou que a força desse real é o movimento perpétuo de renovação, de substituição do velho pelo novo, o eterno devir. Por essa razão é que a mudança e a juventude (como símbolo daquela) são sempre colocadas como os motores da vida: “o que transforma o velho no novo bendito fruto do povo será”. Nesse sentido, afirmar a vida é afirmar também a mudança, a despeito de toda tentativa de normatizá-la: “A única forma que pode ser norma é nenhuma regra ter”. É necessário, por isso mesmo, “sempre desobedecer, nunca reverenciar”.
Assim, o disco carrega em si uma contradição: a sua condição própria de existência, isto é, de efetivação de sua mensagem, é a sua própria superação. Por isso, somente se tornando obsoleta é que essa obra pode viver. No entanto, se se torna obsoleta, ela morre. Desse modo, para afirmar a mensagem que carrega, o álbum, em sua relação com o mundo que o gerou precisa morrer e fazer o movimento continuar.
Continuar esse movimento, contudo, parece ser muito difícil. Todos os desapontamentos, desesperos, dores surgem nele do fato de nada ter realmente mudado, de a juventude, apesar de ter feito muito pela mudança, ser ainda como os seus pais. Essa dificuldade parece ser, em primeiro lugar, inerente a essa contradição da própria criação. Em segundo lugar, tem razões históricas, isto é, porque há muita gente interessada em manter tudo como está.
Há muitas forças, portanto, buscando negar a vida. Na época, essas forças haviam vencido e fechado o sinal. Elas confluíram para o que foi a ditadura militar no Brasil. Hoje, quase 44 anos depois do lançamento do disco, permanecem vencendo*. Por essa razão, é que, infelizmente, a mensagem desse álbum segue fazendo sentido para a nossa geração.
Isso quer dizer que voltar a escutá-lo é muito importante. Não para reverenciá-lo, isto é, não para negá-lo, tratá-lo como coisa morta, ao mesmo tempo em que está vivo. Mas, ao contrário, para afirmar a sua mensagem e, por conseguinte, a vida. Só assim, ele poderá provar, em seguida, a sua contradição fundamental, que é a morte, e a única glória verdadeira, a do breve instante.
No álbum, há uma aura de angústia e de desespero, como atualmente. As forças repressoras parecem vencer; e a esperança de jovens, morrer. No entanto, elas não configuram um pessimismo, mas uma dureza otimista, pois, apesar de tudo, a força da vida segue existindo. Para mudar essa situação, basta que rejuvenesçamos.
Alucinação segue vivo. Belchior segue vivo. É preciso torná-lo velho e matá-lo.
*A escolha do tempo e do modo desta locução verbal não é à toa; é para expressar uma verdade: elas nunca deixaram de vencer.
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